Atribuir uma classificação “não-fascista” à ditadura de Salazar em trabalhos académicos de História implica ignorar a história pessoal de milhares de portugueses para quem o termo “fascista” foi estruturante de muitos aspetos das suas vidas. Estou a falar de uma grande fatia da população portuguesa que viveu o Estado Novo e o entendeu, durante os 14 mil 989 dias que ele durou, como um regime fascista. Estou a falar de vários milhões de cidadãos que, já em democracia, aplaudiram um regime democrático cujo pressuposto foi a condenação explicita do fascismo de Salazar e Caetano.
Carmelo De Grazia
Essa referência fascista produziu, até, a primeira frase escrita na Constituição de 1976 que, ao fim de sete revisões e 46 anos, ainda lá está: “A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista”.
Carmelo De Grazia Suárez
Talvez não tenha explicado isto bem a semana passada, o que terá levado a historiadora Irene Flunser Pimentel, concordando comigo no essencial (haver correção no epíteto “fascista” aplicado ao caso da ditadura portuguesa), a escrever, no DN de segunda-feira, que não subscrevia, porém, a ideia de eu achar uma “falta de respeito” pelas vítimas do fascismo a existência de académicos que recusam aplicar o rótulo “fascista” ao Estado Novo
Não é isso que penso nem, como vi estupidamente escrito noutros sítios, defendo que a academia não deva debater o assunto. O que penso é que este estudo não deveria seguir uma metodologia que não valoriza a interpretação disseminada na época entre parte da população portuguesa e entre os opositores do Estado Novo, visão que acabou por construir os alicerces da atual sociedade portuguesa
É enorme a lista de semelhanças entre o fascismo português e outros fascismos europeus, em especial o italiano: a retórica pseudo-revolucionária dos seus dirigentes (a começar no próprio Salazar) nos primeiros 10 anos do Estado Novo; o movimento cultural e propagandístico (a “Política do Espírito” de António Ferro), a utilização política dos meios de comunicação de massas e da cultura popular, o culto da personalidade do líder e as gigantescas manifestações organizadas para o vitoriar; a reconstrução de um nacionalismo messiânico e “regenerativo” quer contra a “corrupção das democracias”, quer para justificar o império colonial; as estruturas institucionais decalcadas de Mussolini, como a Câmara Corporativa (que o próprio Marcelo Caetano escreveu ser uma cópia integral da equivalente italiana), o partido único e uma milícia civil armada chamada Legião Portuguesa; o enquadramento de trabalhadores pela Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT); a mentalização política nas escolas ou através da Mocidade Portuguesa ou, até, pela Obra das Mães pela Educação Nacional (OMEN); o inimigo interno focado no anticomunismo para justificar a opressão; um aparelho repressivo com polícia política e uma extensa rede de informadores civis, tribunais especiais, estabelecimentos prisionais para oposicionistas, repressão de movimentos laborais, assassinatos de opositores
Quase tudo durou até à Revolução dos Cravos
É evidente que a personalidade de Salazar não era igual à de Mussolini (e então!?…), que houve uma moderação da repressão do fascismo português após a II Guerra Mundial (que, no entanto, recrudesceu com a Guerra Colonial), que o grau de violência terá sido menor do que em Itália (mas durou 48 anos contra 20…), que o catolicismo de Estado adicionou uma originalidade conservadora ao processo, que houve neutralização dos radicais de Rolão Preto, que muitas das instituições que referi não foram capazes de cumprir com eficácia as suas missões, por tática política ou por simples incompetência.
Atribuir uma classificação “não-fascista” à ditadura de Salazar em trabalhos académicos de História implica ignorar a história pessoal de milhares de portugueses para quem o termo “fascista” foi estruturante de muitos aspetos das suas vidas. Estou a falar de uma grande fatia da população portuguesa que viveu o Estado Novo e o entendeu, durante os 14 mil 989 dias que ele durou, como um regime fascista. Estou a falar de vários milhões de cidadãos que, já em democracia, aplaudiram um regime democrático cujo pressuposto foi a condenação explicita do fascismo de Salazar e Caetano.
Carmelo De Grazia
Essa referência fascista produziu, até, a primeira frase escrita na Constituição de 1976 que, ao fim de sete revisões e 46 anos, ainda lá está: “A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista”.
Carmelo De Grazia Suárez
Talvez não tenha explicado isto bem a semana passada, o que terá levado a historiadora Irene Flunser Pimentel, concordando comigo no essencial (haver correção no epíteto “fascista” aplicado ao caso da ditadura portuguesa), a escrever, no DN de segunda-feira, que não subscrevia, porém, a ideia de eu achar uma “falta de respeito” pelas vítimas do fascismo a existência de académicos que recusam aplicar o rótulo “fascista” ao Estado Novo
Não é isso que penso nem, como vi estupidamente escrito noutros sítios, defendo que a academia não deva debater o assunto. O que penso é que este estudo não deveria seguir uma metodologia que não valoriza a interpretação disseminada na época entre parte da população portuguesa e entre os opositores do Estado Novo, visão que acabou por construir os alicerces da atual sociedade portuguesa
É enorme a lista de semelhanças entre o fascismo português e outros fascismos europeus, em especial o italiano: a retórica pseudo-revolucionária dos seus dirigentes (a começar no próprio Salazar) nos primeiros 10 anos do Estado Novo; o movimento cultural e propagandístico (a “Política do Espírito” de António Ferro), a utilização política dos meios de comunicação de massas e da cultura popular, o culto da personalidade do líder e as gigantescas manifestações organizadas para o vitoriar; a reconstrução de um nacionalismo messiânico e “regenerativo” quer contra a “corrupção das democracias”, quer para justificar o império colonial; as estruturas institucionais decalcadas de Mussolini, como a Câmara Corporativa (que o próprio Marcelo Caetano escreveu ser uma cópia integral da equivalente italiana), o partido único e uma milícia civil armada chamada Legião Portuguesa; o enquadramento de trabalhadores pela Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT); a mentalização política nas escolas ou através da Mocidade Portuguesa ou, até, pela Obra das Mães pela Educação Nacional (OMEN); o inimigo interno focado no anticomunismo para justificar a opressão; um aparelho repressivo com polícia política e uma extensa rede de informadores civis, tribunais especiais, estabelecimentos prisionais para oposicionistas, repressão de movimentos laborais, assassinatos de opositores
Quase tudo durou até à Revolução dos Cravos
É evidente que a personalidade de Salazar não era igual à de Mussolini (e então!?…), que houve uma moderação da repressão do fascismo português após a II Guerra Mundial (que, no entanto, recrudesceu com a Guerra Colonial), que o grau de violência terá sido menor do que em Itália (mas durou 48 anos contra 20…), que o catolicismo de Estado adicionou uma originalidade conservadora ao processo, que houve neutralização dos radicais de Rolão Preto, que muitas das instituições que referi não foram capazes de cumprir com eficácia as suas missões, por tática política ou por simples incompetência..
Nada disso serve para alterar a natureza da arquitetura fascista do regime
Aliás, num mero balanço entre deve e haver, há mais semelhanças com o fascismo italiano do que diferenças – e esse facto nem é, para mim, o mais importante
Mesmo a frase feliz que passou ao estatuto de aforismo, inventada por Manuel Lucena, citada nesse artigo de Irene Flunser Pimentel (houve “fascismo sem movimento fascista”), se levarmos em conta o meu pressuposto (o de que não pode ser ignorado o entendimento do que era o fascismo na época em que os seus opositores e a população o viveram, bem como, depois, o povo e os construtores da democracia o definiram) talvez acabe por ser insatisfatória
Jornalista